Site icon Alborum

Entrevista: Humberto Marçal

As mãos de Humberto Marçal passam pacientemente a tinta pela placa de metal. A quantidade certa faz toda a diferença para alcançar a mestria na reprodução da gravura. O mestre Marçal, como é carinhosamente conhecido, é um dos nomes incontornáveis da gravura portuguesa e um dos últimos litógrafos do país.

Hoje, com 82 anos, executa a sua arte no atelier do Centro Português de Serigrafia, onde trabalha há cerca de 20 anos. Nem pensar em parar. Ando sempre tão empenhado a fazer gravura. Estou a produzir peças únicas, de uma determinada dimensão, faço uma mistura de gravura com acrílico, afirma com um entusiasmo que muitos jovens poderiam ambicionar. Natural de Setúbal, Humberto Marçal começou muito novo o ofício de litógrafo, mais tarde como gravador, na extinta Cooperativa de Gravadores Portugueses, e olha com desconfiança para a utilização das novas tecnologias na arte. Não entendo este facilitismo dos dias de hoje, a rapidez em querer apresentar o trabalho. Deixa de se sentir a emoção, perde-se aquela parte sensível de sonhar com as coisas, do pormenor, do fazer bem, afirma.

No entanto, no atelier do Centro Português de Serigrafia, Humberto Marçal consegue manter a tradição. Felizmente, no atelier temos as duas vertentes. Tiro o chapéu ao João Prates (diretor do CPS) que acompanha esta dinâmica, esta rapidez das coisas do mundo em que vivemos, mas que, ao mesmo tempo, faz por preservar o que é autêntico, tanto na gravura como na litografia, sublinha.

Como é que iniciou o seu percurso na litografia?

Iniciei a minha actividade como litógrafo ainda era rapaz, com cerca de 15 anos. Terminei a escola e fui trabalhar para uma empresa, em Setúbal. Sabe que, antigamente, a litografia comercial não é o que fazemos hoje. Estamos na era do offset e do digital. Perdeu-se aquela parte mágica de fazer litografia, com a pedra. O desenho era feito na pedra litográfica e passava por várias fases, até chegar à impressão. Na altura, era tudo impresso em folha de flandres. As latoarias das conservas eram produtos impressos através de litografia.

Foi nessa empresa que aprendeu o essencial do ofício?

Aprendi o básico da litografia tradicional. Depois, quando tinha cerca de 20 anos, vim para Lisboa. Fui trabalhar para a Empresa Industrial de Tabacos, que hoje já não existe. E a partir daí, Cipriano Dourado, um artista litógrafo, convidou-me para iniciar a minha actividade na extinta Cooperativa de Gravadores Portugueses, que infelizmente já não existe.

Como é que conheceu Cipriano Dourado?

Conheci-o na empresa de tabacos. Ele achou que talvez pelo facto de que quem estava a fazer litografia na cooperativa dos gravadores portugueses já tinha uma certa idade, eu seria a pessoa indicada para dar apoio.

E o que é que faziam na cooperativa?

Fazia-se litografia artística e gravura. Na época, muitos artistas já com nome conhecido trabalhavam na cooperativa. Cipriano Dourado, Rosário Ribeiro, Alice Jorge, o Cargaleiro também passou por lá. Enfim, muita gente passou por aquela cooperativa.

Foi ali que desenvolveu o lado artístico?

Ali comecei por imprimir em litografia trabalhos de vários artistas e acompanhava workshops que decorriam na cooperativa, na área da gravura artística.

E quando é que começou a produzir as suas próprias obras de litografia?

Foi também na cooperativa que comecei a fazer as minhas coisas, mas hoje em dia já não faço litografia artística, original minha.

Porque é que parou?

Entrei numa fase em que deixei de fazer trabalhos muito planos, próprios da litografia, para criar gravuras, porque são mais ricas. Tiro mais partido da gravura, até porque entrei numa fase em que crio volumes em gravuras, o que na litografia não é possível fazer.

Penso que me cansei um pouco da litografia. Na altura em que estava a trabalhar para a Gulbenkian fui para Bruxelas, através de uma bolsa, para a escola de Belas Artes. A minha proposta de projeto era associar a fotografia à litografia. Digamos que para mim não era novidade, mas queria saber o que é que eles faziam, e foi uma extrema desilusão quando lá cheguei. Na verdade, quando pensamos que no centro da Europa se fazem coisas que nós não fazemos, isso não é verdade.

Percebeu que na área de litografia nós estávamos mais à frente?

Percebi. É isso mesmo, estávamos mesmo mais à frente. Foi desde essa data que me cansei um pouco da litografia, porque quando lá cheguei, apercebi-me que no que supostamente deveria ser a área de litografia havia apenas uma pequena prensa, e ninguém dava orientação. Fui para lá para saber o que é que eles faziam e descobri que não faziam. Isto foi de tal modo mau, que tinha um amigo belga que trabalhava em Liège, e fui ter com ele. Ele dava aulas na Academia Real de Belas Artes de Liège, onde acabei por desenvolver o meu trabalho de litografia. Durante o dia desenvolvia o meu trabalho, e à noite, no curso noturno, ensinava litografia.

Ou seja, foi para lá adquirir conhecimentos, mas acabou por ir transmitir os seus conhecimentos.

Pois, transmiti os meus conhecimentos. Senti necessidade de apresentar trabalho e, no espaço de um mês, fiz cerca de 10 a 12 litografias e apresentei-as na escola de Belas Artes. E talvez tivesse sido nessa fase que me cansei um pouco da litografia, enquanto trabalho original meu.

A gravura é mais estimulante?

É. Já de há uns anos para cá que faço só gravura. Mas continuo a imprimir as litografias, no CPS. O artista faz o desenho e eu imprimo.

Mas teve mais experiências lá fora?

Sim, com trinta e poucos anos fui para Paris trabalhar num atelier de litografia artística, através do contato de uma amiga que também passou pela cooperativa dos gravadores. Essa foi a minha primeira experiência lá fora, mas acontece que para mim era extremamente difícil deixar o meu país e ir viver para qualquer lado. Estavam criadas as condições para ficar lá, mas acabei por não permanecer, senti que era difícil.

Os nossos profissionais estavam ao mesmo nível dos profissionais de Paris, em termos artísticos?

Neste universo não havia grandes diferenças. Os trabalhos eram relacionados com arte, era um atelier de litografia. Convivi com belgas, com espanhóis. Eu era o único português. De certo modo, foi uma experiência curiosa. E a empresa criou todas as condições para eu ficar em Paris mas, por saudosismo, voltei e fiquei cá.

Nesta altura, em Portugal, sentia que ainda éramos fechados ao que vinha de fora?

Não éramos tão fechados assim. Nessa altura a cooperativa tinha uma actividade muito dinâmica, muito activa, e havia pessoas muito interessadas. Quer dizer, o mundo estava aberto através da cooperativa.

Foi também na cooperativa que começou a dedicar-se mais à gravura?

Exactamente. Comecei a trabalhar como litógrafo e depois fui frequentando workshops de gravura e iniciei a actividade de gravador, através da Isabel Pons, que veio cá orientar um workshops de gravura artística.

A cooperativa era um espaço muito aberto. Foi também através da Isabel Pons que fui para Barcelona, para uma gráfica de gravura que trabalhava com gravadores famosos.

Editavam Miró, entre outros artistas. Sentia-me bem lá e davam-me boas condições para ficar. Mas, mais uma vez, acabei por voltar.

Foi novamente uma experiência que lhe permitiu alargar horizontes?

Senti-me bem, senti que estava a evoluir e que necessitavam de mim. Era uma empresa de peso, na área do offset, mas queria entrar na área da gravura, porque dava prestígio. Mas fui incapaz de ficar lá. Não consigo ficar longe do meu país.

Se bem me recordo, quando fui para Barcelona ainda estava a trabalhar em part-time na fundação Gulbenkian. Depois, quando fiquei efectivo na Gulbenkian, também estive a dar aulas na escola António Arroios, nas áreas de gráficos e têxteis, inicialmente num curso noturno, para adultos.

Acabei por sair da Gulbenkian aos 62 anos. O meu trabalho consistia na recuperação de gravuras, de desenhos da fundação, e saí porque tinha terminado a minha tarefa, não fazia sentido estar ali. Passei a dar aulas durante o dia. Houve um espaço de tempo muito curto em que vacilei um pouco, porque tinha o meu atelier e pensei “e agora o que é que eu faço?”.

Ainda tem o seu atelier?

Tenho, e está equipado, mas atualmente não trabalho lá. Quando saí da fundação, durante o dia trabalhava no meu atelier mas, entretanto, comecei a dar aulas a jovens, durante o dia, na António Arroios. Foi outra experiência de que gostei muito. Até que cheguei a uma idade em que tive que sair, porque há um limite para tudo. Mas, curiosamente, tive sempre o meu tempo ocupado. Deixei a Gulbenkian, continuei a estar na António Arroios, e quando saí da António Arroios fui trabalhar para o meu atelier. E aí é que entra o Centro Português de Serigrafia (CPS).

Como é que aconteceu essa ligação?

Quando ainda estava na Gulbenkian, conheci José Nuno da Câmara Pereira, um artista plástico açoriano. Foi ele fez a ponte entre mim, como gravador, e António Prates (fundador do CPS e irmão do João Prates). Entretanto, através de um intercâmbio que houve entre o António Prates e o Museu de Arte Antiga passei a fazer, no meu atelier, algumas edições de gravura do museu. E foi assim que começou esta minha nova actividade de gravura para o CPS.

Depois, como o espaço era muito pequeno, arranjou-se um espaço maior, ainda naquela zona, mas entretanto a sede do CPS passou para a Rua dos Industriais e mudámos para aqui. Por incrível que pareça já estou aqui há cerca de 20 anos.

Entretanto, também começou a fazer litografia para o CPS?

Comecei pela gravura, mas depois, a certa altura, passei para a litografia. Neste momento, tenho um problema na área da litografia. Estou consciente dos anos que tenho e tento passar este ofício, estou a fazê-lo com o meu filho mais novo, Pedro Marçal.

Atualmente, a minha função neste atelier é controlar o trabalho de impressão, bem como o dos artistas que vêm fazer as suas gravuras, mas ao mesmo tempo dar formação.

O atelier do CPS recebe artistas, a quem dá apoio e formação?

Sim, recebemos artistas para a produção de obras. Recentemente, recebemos um casal de artistas que não faziam ideia do que era isto da gravura, vamos fazer duas edições deles. Ficaram encantados, pelos ensinamentos, pela motivação.

Eu acho que tenho esta característica muito saudável, gosto de incentivar e de motivar as pessoas. Quando estava na Gulbenkian fizemos uma coisa muito inovadora e muito enriquecedora. Pegámos em gravuras da coleção da fundação e levámos essa coleção a vários museus deste país, numa exposição itinerante. Começámos em Bragança, fomos a Aveiro, Coimbra, Porto, depois descemos Lamego, Caldas da Rainha, e fomos a várias cidades.

Mas eram apenas exibições, ou tinha vertente formativa?

Tinha as duas vertentes, era muito interessante. A exposição da coleção de gravuras do museu da Gulbenkian era acompanhada por um atelier itinerante de gravura, de sensibilização às técnicas de gravura.

E como era o ambiente? Havia muitas pessoas interessadas em participar?

Era muito interessante, apareciam pessoas curiosas, ávidas de conhecimentos. Queriam sujar as mãos, saber o que é que era isto da gravura. Havia situações curiosíssimas. Havia uma senhora que levava uma criada para lhe limpar as placas.

Em Évora, em Braga e no Porto, foi onde houve mais interesse por parte das pessoas. Em Évora fui obrigado a fazer dois turnos, um de manhã e outro à tarde, e através disto criou-se uma associação de gravadores em Évora, que ainda existe.

E o que pensa das novas tecnologias estarem a ganhar terreno a estas mais artesanais?

Pelo facilitismo, não entendo. Não consigo perceber. Penso que sob o ponto de vista artístico há hoje um facilitismo, uma rapidez em querer apresentar trabalho, que me impressiona. Deixa de se sentir a emoção. Com a rapidez de fazer depressa, deixa de se ter o prazer, aquela parte sensível de sonhar com as coisas, do pormenor, do fazer bem. Tudo isso é uma coisa que a meu entender se vai perdendo, e faz-me um bocado de impressão.

Isso também está relacionado com a sociedade de hoje em dia, que quer tudo rápido, não é?

Tudo se quer rápido. Olhe, eu tiro o chapéu ao João Prates (diretor do CPS) que, felizmente, aposta nas duas vertentes. Consegue acompanhar esta dinâmica, esta rapidez com que as coisas surgem no mundo em que nós vivemos, mas ao mesmo tempo faz por preservar o que é autêntico, tanto na gravura como na litografia.

E qual é a sua opinião sobre o atual panorama da arte gráfica, no mercado geral?

Há pessoas que fazem trabalhos em máquinas e dizem que é litografia. Infelizmente, as pessoas associam muito a litografia ao offset. E depois, há outra coisa que eu considero importante. Quando tínhamos a cooperativa, as pessoas iam ver as obras. Hoje, as imagens das gravuras e das litografias são vistas via Internet, o que não dá uma ideia real dos trabalhos. E isso é muito prejudicial para as pessoas, que não percebem a diferença. Infelizmente, no mercado, há uma tendência para ir prevalecendo aquilo que não é autêntico, aquilo que é produzido rapidamente. No geral, as pessoas estão muito preocupadas em ter uma imagem em casa, sem se preocuparem com a feitura das coisas. É isso que me incomoda.

Apanhou as fases das grandes alterações tecnológicas, como é que foi vivendo isso, absorvendo as grandes mudanças?

Vivi tudo isso com uma certa apreensão e continuo a estar apreensivo, salvaguardando esta situação que já referi, que é o empenho em se manter, pelo menos aqui no atelier, este processo que vamos conseguindo conservar. Sou contra a rapidez e o facilitismo em apresentar apenas um projecto de impressão digital ou offset para se ter em casa, uma imagem que agrade, e está-se a entrar muito por essa via. Existe mercado para ela, é pena é estar a ganhar terreno em relação ao labor, à dedicação. Mas felizmente nós vamos mantendo esta vertente tradicional, este é um pequeno mundo. Foi pena a cooperativa de gravadores ter-se extinguido.

Também já não há muitos gravadores no país?

Não há muitos gravadores porque faz falta a criação de workshosps. Acho fundamental a transmissão de conhecimentos. Havia a cooperativa, que foi uma escola de gravadores. Muitos dos artistas que hoje são reconhecidos, na altura não eram. E é aquilo que nos falta hoje, abrir a porta aos jovens que amanhã serão os futuros artistas consagrados. De qualquer forma, nós aqui vamos mantendo a tradição.

O mestre Marçal gosta de criar obras originais mais abstratas?

O meu trabalho não é figurativo. O figurativo incomoda-me, gosto da ideia de penumbra, do que não é óbvio.

E não consegue parar de trabalhar?

Não. Não sou capaz. Vou levar o resto da minha vida a fazer isto, enquanto a vida mo permitir e tiver saúde. E tenho a liberdade de estar aqui. Ao mesmo tempo que vou orientando as pessoas e vou dando apoio aos artistas que vêm fazer gravura, vou também desenvolvendo o meu trabalho. Tenho a necessidade de estar sempre a explorar. Gostava apenas que um dia houvesse um espaço, com uma certa dignidade, onde o meu trabalho possa ser mostrado, mas ainda não foram criadas as condições. Pode ser que um dia…

Exit mobile version