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Entrevista: Guilhermino Pires

Conhecido pelo seu legado à indústria nacional de artes gráficas, Guilhermino Pires, fundador do curso de Tecnologia das Artes Gráficas do Instituto Politécnico de Tomar, defende que mais do que investir em equipamentos de última geração, as empresas devem apostar em profissionais qualificados, para alcançar o sucesso.
De que forma entrou no mundo das artes gráficas?
Guilhermino Pires

Em criança, gostava muito de escrever e preocupava-me por não saber como eram feitos os livros e como apareciam as letras no papel. Mais tarde, fui para a escola profissional do Colégio dos Salesianos, onde me interessei pela arte da impressão. Quando tinha 16 anos já fazia composição e dois anos depois comecei a imprimir. Mais tarde, ao mesmo tempo que evoluía no curso, também dava aulas aos anos anteriores. Após completar o ensino profissional, fui para a Itália, onde fiz o curso de magistério gráfico, com o objetivo de poder ensinar plenamente nesta área, porque era o que eu mais desejava, ficando assim com habilitações para ensinar o 5º ano, em Portugal. No entanto, em 1967, a formação profissional foi extinta, em Portugal, e colocava-se a questão sobre o que poderia fazer. Acabei por me inscrever na Universidade de Turim, tendo sido o primeiro português a enveredar numa escola superior de tecnologia de artes gráficas, a nível europeu. Já licenciado, vim para Portugal e coloquei-me ao serviço daqueles que me ensinaram a amar as artes gráficas. Continuei nos Salesianos, e fui dar aulas de formação profissional para a Madeira, onde havia ainda uma escola gráfica.

Como surgiu a oportunidade de trabalhar na Imprensa Nacional?

Três anos depois voltei para Lisboa, onde a formação profissional já se encontrava decadente e comecei a dar aulas, quando fui desafiado a ingressar na Imprensa Nacional, através de concurso. Na altura, a Imprensa Nacional era um verdadeiro museu, quer nas instalações, quer em equipamento ou em pessoal. Quando aceitei este desafio, foi com a perspectiva de alterar a situação. O objetivo passava por formar gente nova e equipar e modificar instalaçõe, e a partir de 1972 começámos a ter formação profissional de artes gráficas.

Que funções desempenhava?

Entrei como sub-director e um ano depois fui nomeado director. Como director, tinha a responsabilidade da gestão e da produção, mas nunca menosprezei a formação técnica profissional dos funcionários da empresa. Em 1972, a Imprensa Nacional fundiu-se com a Casa da Moeda. A fundição tipográfica da Imprensa Nacional criou também novos tipos para impressão, dos quais redesenhei alguns e criei outros, que fazem parte do catálogo e da história da tipografia.

Entretanto, também desenvolveu outras atividades?

Sim, em 1972 surgiu, em Lisboa, o IADE, e fui convidado a dar aulas, em horário pós-laboral. Também escrevi um livro, onde desafiava o Governo a relançar a formação técnica profissional, e um ministro aceitou o meu desafio, José Augusto Seabra, que entretanto faleceu e passou a missão aos ministros que o sucederam. Propuseram que eu fizesse um estudo e um levantamento, a nível nacional, das carências existentes no país, na formação de artes gráficas, que concluí em 1982. Fui também o promotor de um projeto destinado à criação de uma escola, a nível nacional, de tecnologia e artes gráficas. Sempre defendi a retoma da formação técnica e profissional e fui muito ativo nesse sentido, junto do ministério da educação. Quando saíram as portarias da retoma do ensino técnico e profissional em Portugal, no Diário da República, o ministro pediu-me que lhe levasse, em mãos, exemplares do Diário da República e entregoume uma medalha onde constava o sumário das portarias, escrito por mim. Foi a melhor condecoração que recebi.

O ensino técnico e profissional estava novamente lançado, em parte também devido ao seu empenho para que isso acontecesse…

A partir de 1983 estava lançada a ideia de avançar, no ano seguinte, com os cursos nas escolas secundárias. Mas já a pensar no que aconteceria depois dos três anos de formação, criei um projeto para se avançar com uma escola superior e que foi aceite. O ministro da educação indicou-me que deveria ir para Tomar, para assumir a responsabilidade pelo curso superior de Tecnologia das Artes Gráficas. Foi, assim, criado o bacharelato do curso de tecnologia e artes gráficas. Na altura, tive que pedir à administração da Imprensa Nacional, a concessão de um dia por semana para me deslocar a Tomar. Coordenei o curso desde o recrutamento dos professores, delineei os planos, onde se encontravam as matérias curriculares de cada um dos anos. Em 1986 começámos a preparar todo o ambiente, bem como as oficinas, e em 1987 o curso foi aprovado e arrancou com o primeiro ano. Em 1990 foi promovido a CESE, curso superior especializado, e contou com mais dois anos para licenciatura. No início dos anos 90, saí da Casa da Moeda. Estive na escola de Tomar como professor e diretor durante todo o tempo que me foi possível e, quando completei os 70 anos de idade, já não podia continuar. Hoje, o curso continua e é uma pedra angular do Instituto de Tomar, e uma referência a nível nacional.

Enquanto era responsável pelo curso, em Tomar, também se dedicava a outros projetos?

Em simultâneo, dava aulas na Universidade Católica, aos mestrados de comunicação, e na Universidade Aberta, ao mestrado de tecnologias de comunicação e educação comunicacional. Na Universidade Aberta era também diretor.

Qual a sua opinião sobre a evolução, em Portugal, das artes gráficas? Muitos empresários referem, por exemplo, a falta de boa formação…

Nas indústrias gráficas, que trabalham por encomenda, utiliza-se o velho chavão que diz que se deve satisfazer o cliente, porque é o cliente que paga. Conforme o cliente pede, assim se faz. Isso é um erro e demonstra falta de convicção. O cliente nem sempre tem a formação estética ou técnica para orientar seja o que for. Mas é ele que paga e o fornecedor condiciona o seu trabalho ao que o cliente pede. Isto deforma o profissional. Muitas vezes, o cliente é próprio próprio designer que exige que a gráfica respeite aquilo que ele fez na sua maquete, e cuja prova imprimiu, em digital, exigindo que a cor que resultou de um equipamento digital venha a ser a mesma cor da impressão offset. Sabemos que o suporte da impressão, sendo diferente daquele que foi utilizado para fazer a prova, não apresenta o mesmo resultado. A falta de formação acontece a partir do próprio criativo, que exige aquilo que não pode ser exigível ao impressor que, por sua vez, se vê aflito para corrigir as falhas do designer. Os erros na pré-impressão têm sido de tal maneira que quem faz a paginação para o transporte para a chapa, se vê em grandes trabalhos para poder corresponder, porque muitas vezes o designer não respeita as normas relativas, por exemplo, ao formato do papel e às margens, entre outros aspetos. Como nem sempre o designer domina estas matérias, o trabalho que entrega é algo visualmente muito bem feito, que foi anteriormente aprovada pelo cliente, e que este vai exigir à gráfica que o faça igual, mas que exige muito trabalho e luta aos profissionais de pré-impressão, que têm várias dificuldades a vencer e que, em vez de fazerem 64 páginas numa hora, fazem apenas 16, porque têm que corrigir os defeitos do trabalho do designer. Portanto, há várias divergências que criam problemas graves, e compreendo os gráficos, que têm razão quando pedem que os originais venham em condições de utilização para pré-impressão, e para depois seguirem para a impressão.

Por outro lado, muitas vezes o cliente pede que o trabalho seja feito de uma forma que nem sempre é possível, porque o suporte em que se fez a impressão da prova, digital muitas vezes não é igual ao da impressão final, e não virá com a mesma tintagem e características da impressão offset. Isto significa que há problemas fundamentais que se prendem com a formação, formação que vem primeiro do próprio designer, o criativo que deveria dominar as técnicas que vêm no seguimento do seu trabalho.

Mas existem outros tipos de falhas, em termos da formação, em Portugal?

A vários níveis. Desde que, a partir de 1984, se formaram cursos técnico e profissionais, foram criados alguns pólos no país, como a escola de Vale do Rio, o Internato dos Carvalhos, os Salesianos do Porto, e a Bento Jesus Caraças. No entanto, os alunos confrontam-se atualmente com outro problema. Estes jovens não têm emprego. Muitas gráficas fecharam, não recebem novos elementos, e os que já tinham algum conhecimento vão trabalhar para outras áreas. Esta é uma grande falha, e é um ciclo vicioso. Os empresários queixam-se de falta de formação, mas há gente formada que não admitem porque têm pessoal a Conhecido pelo seu legado à indústria nacional de artes gráficas, Guilhermino Pires, fundador do curso de Tecnologia das Artes Gráficas do Instituto Politécnico de Tomar, defende que mais do que investir em equipamentos de última geração, as empresas devem apostar em profissionais qualificados, para alcançar o sucesso. Guilhermino Pires mais.No entanto, há várias gráficas que se recomendam e estão bem, porque conjugam, com os equipamentos, o conhecimento adquirido pelos seus próprios profissionais.

Que tipo de empresas pensa que vão conseguir singrar?

Nestas circunstâncias, só vão continuar a progredir as empresas que tiverem o know how, o conhecimento tecnológico. Não me refiro às máquinas, mas sim às pessoas, porque apesar das atualizações permanentes que a indústria recebe, em termos de automatismos por exemplo, não se comparam à apreciação estética, à apreciação qualitativa do bom técnico, que com a lupa e o conta- fios verifica se a imagem está perfeita e se a tinta tem a dose suficiente. É o profissional, competente e habilitado, que vai dar o contributo para a manutenção do mercado das indústrias gráficas. Só através da formação se conseguirá ganhar esta batalha, não só com o cliente que pede “agora e para já”, como com aqueles que entregam o projeto, inclusive através da Internet e de meios tecnológicos, para ser impresso, seja aqui ou na Tailândia. Imprimese lá fora porque é mais barato. Isto provoca uma concorrência desenfreada, e a concorrência destrói, e tem destruído, grande parte dos nossos industriais, pequenos e médios.

Até que ponto considera que a concorrência está a agravar a crise no sector?

A concorrência, em Portugal, é de sobrevivência, de “ou mato ou morro”, e neste contexto tudo tem sido aceitável. Isto é grave. O que é que é preciso para Portugal sair deste marasmo? Perante uma concorrência desenfreada e desleal, há que lutar com o cliente fazendo-lhe uma pergunta: o que é que quer? Bom, bonito e barato, ou apenas bom, ou apenas bonito…mas bom e bonito barato não é possível sem se pagar para o ter. A qualidade paga-se, e temos que lutar por ela. E a qualidade assenta, antes de mais, na qualidade dos profissionais e da mentalidade do empresário, que deve apostar em colaboradores especializados. O empresário pode procurá-los e deve também colaborar na sua formação, prestando um contributo importante aos que ainda não têm formação prática suficiente.

A própria associação dos industriais deveria ter a responsabilidade de permitir uma maior possibilidade aos empresários de apostar na sua formação, partilhando com os empresários cursos de formação contínua, porque com a evolução tecnológica exige- se formação contínua, ao longo da vida.

Mas alguns dos clientes, mais do que na qualidade, estão interessados no preço…

A esses clientes diria aquilo que um grande mestre me ensinou: “assim não sei fazer”.

Mas nem todos os empresários se podem dar ao luxo de recusar trabalho…

Talvez, mas o grau de convencimento de um fornecedor para manter um cliente deve passar por lhe mostrar que o caminho é pela qualidade, até para o seu próprio prestígio.

Como analisa a atual situação do mercado gráfico português?

Apesar de todo este discurso crítico, estou muito optimista e extremamente entusiasmado com os produtos gráficos produzidos no nosso país. Estão a ser feitos trabalhos que eram impensáveis há alguns anos. Tem-se feito uma caminhada no sentido da qualidade, da apresentação gráfica, da própria produção e até do próprio preço que se pratica, o que é louvável, e é este o caminho de muitos empresários, que apontam para o futuro com optimismo. Aprecio muitíssimo aqueles que, apesar da crise, investem e estão a investir. Mas peço encarecidamente a estes corajosos empresários que sejam vitoriosos. A vitória alcança-se através da luta, e a luta parte da convicção na formação técnica profissional. Quando vou lá fora, gostaria de ver mais trabalhos impressos em Portugal e penso que isso será possível, devido à mentalidade dos novos empresários, aqueles que estão realmente a investir nesse sentido, que dão uma grande esperança e uma perspectiva de desenvolvimento. Para já, o que importa é a manutenção da empresas e conseguir atravessar a crise, mas, à saída da crise, vai haver com certeza uma explosão fantástica, é isso que desejo aos empresários portugueses.

Pensa que o facto de muitas gráficas terem fechado portas nos últimos anos pode ter contribuído para essa melhoria geral, em termos de qualidade?

Sou testemunha de muitas angústias vividas pelos empresários que passaram por isso. Acompanhei o processo de um grande empresário das artes gráficas, responsável por uma das mais bens instaladas e equipadas empresas que, devido à crise dos bancos, e não da mentalidade ou estrutura da empresa, foi obrigada a fechar. É inconcebível que a mentalidade bancária em Portugal se tenha instalado e sentado numa poltrona, à espera de lucro, sem ter o arrojo de utilizar mais utopia na rotina. A utopia era investir onde realmente poderia haver lucro. Mas recusar crédito e impedir o avanço da atividade é criminoso e gera catástrofes.

Muitas gráficas fecharam também por outros motivos…

Algumas gráficas mais pequenas, devido ao desenvolvimento dos pequenos centros de impressão digital, foram perdendo mercado e capacidade de resposta. Tinham, no entanto, uma solução que passava por se unirem. Infelizmente, a mentalidade portuguesa não é agregadora. Defendo isto há muitos anos. Em 1974, numa das minhas primeiras intervenções junto dos gráficos defendia que as pequenas empresas se deveriam unir, para formar médias empresas e para ganhar mais força. Mas a resposta que recebia era esta: “prefiro ter 5 meus do que 50 meus e dos outros”.

Por outro lado, também havia demasiada oferta para o que o mercado necessitava…

E coloca-se a questão de alguns empresários não terem conhecimentos de gestão. É preciso parar e refletir. As autoridades e associações de industriais deveriam lutar para dar e permitir habilitações suficientes, não só de gestão, mas também de qualidade e de preparação para uma gestão adequada das empresas, e para criar estímulos para que se agreguem e formem grupo de trabalho, para progredirem, em equipa. Outro dos maiores erros do empresário é querer ser ele a fazer tudo. O empresário tem que saber delegar, para responder ao cliente no momento em que este pedir.

No entanto, muitos empresários gostam de controlar todo o processo de trabalho…

A pergunta a colocar é: o que prefere? Manter-se assim, e ir ao fundo, ou ir levantando cada vez mais empresa? A empresa cresce à medida que subir no patamar da gestão, em vez de se manter no patamar do controlo. Porque a gestão implica planear e controlar. Temos que ser claros, queremos falir ou progredir? A falência é a coisa mais certa, mais segura, mais rápida. Progredir exige um passo de cada vez. E só quando estiver numa posição de equilíbrio é que a empresa pode ter o arrojo de dar o pulo. O pulo faz-se pela tecnologia e pela formação. As duas têm que seguir juntas.

De que forma se pode resolver a falta de investimento nos profissionais recém formados?

O Instituto Politécnico de Tomar prepara pessoas habilitadas e com conhecimentos teóricos. Dêem-lhes lugar para praticar aquilo que sabem na teoria. Muitos empresários recusam, porque têm os profissionais da tarimba, que continuam empiricamente, mas sem os conhecimentos teóricos. O que acontece? No início, quando os alunos de Tomar concluíam os cursos, notou- se que os empresários ficavam na defensiva, porque os novos tinham um curso superior, o que implicava ganhar a um determinado nível, diferente do que ganhavam aqueles que já estavam na empresa. Há que mentalizar, primeiro, aqueles que têm o curso, que devem vestir a bata e trabalhar, aprendendo e corrigindo as suas falhas, e depois, os empresários, uma vez que tudo isso também exige trabalho e empenho da sua parte. Os empresários têm que assumir um compromisso de colaboração com os jovens que empregam.

Que conselho daria aos empresários, no sentindo de contribuir para melhorar o atual cenário?

Antes de mais, queria congratular os empresários que tiveram a coragem de investir, porque isso significa lutar, numa altura de crise, para a vencer. Só vence quem luta. Em segundo lugar, é fundamental que esses empresários, que se lançaram com entusiasmo, sintam que a dinamização da sua empresa implica necessariamente os dois termos que referi, não só o investimento nos equipamentos da última série, mas o investimento na formação, na habilitação técnica de quem vai operar os equipamentos. É isto que é necessário, e o investimento na formação dos operadores é fundamental para progredir.

Não pode, também, faltar uma terceira componente, que implica uma dinâmica comercial, de lançamento no mercado. Sem agressividade no mercado, pedem-se todas as batalhas. O comercial que faz a ligação cliente-empresa deve ter habilitações e conhecimento suficiente. Deixando esse trabalho nas mãos do comercial, o empresário fica livre para outras tarefas que não sejam as da contabilidade, ou de aspetos triviais de funcionamento. Ainda há empresas onde não se vai ao armazém buscar uma folha de cartolina sem que o empresário assine um papel. Essa é uma péssima gestão. O gestor tem que se libertar o mais possível para as tarefas de grande responsabilidade, como seja manter a fidelidade de um cliente, contactar com ele. Por outro lado, é importante que estes contactos sejam isentos de corrupção, outro problema que, por vezes, se encontra nesta indústria.

Faço votos para que a idoneidade contribua para o progresso do país e das artes gráficas, a quem dei a minha vida. Gostaria muito que as artes gráficas, em Portugal, atingissem um patamar de expansão e equilíbrio que lhes permitisse ser uma referência a nível internacional, e acredito, com base nas premissas de compromisso que vejo em muitos empresários, que isso se torna, cada vez mais, possível.

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